domingo, 3 de janeiro de 2010

Os olhos das crianças de Ruanda

Costumo acompanhar na televisão aberta alguns programas matutinos no domingo. Hoje, no programa esportivo foi dado destaque a Ruanda, país africano, marcado por conflitos étnicos gravíssimos. As cenas de um passado recente foram grotescas. As duas etnias predominantes enfrentaram-se violentamente durante anos seguidos. O último massacre deixou marcas difíceis de serem superadas, conforme os depoimentos de alguns sobreviventes. As cicatrizes nos corpos lembram a dor que esses adultos viveram e a mágoa que ainda resta é uma marca na alma.
O objetivo do jornalista, entretanto, era mostrar o papel do esporte na integração das pessoas e na superação das diferenças. E foi bonito ver, convivendo em um mesmo time, jovens de diferentes etnias unidos por um objetivo comum. O espírito de equipe exigido no esporte favorece a harmonia em torno do ideal de todos. As energias são canalizadas para uma meta maior.
O grande destaque do programa, entretanto, foi a presença das crianças transformando a pobreza extrema em um grande patrimônio. Os restos de materiais diversos e sacos plásticos tornaram-se uma sedutora bola de futebol. Criança pobre quando tem liberdade de movimento conquista uma riqueza extraordinária: a capacidade de inventar o tudo com o quase nada. Em geral são crianças que descobrem no próprio corpo um instrumento múltiplo que se reinventa a cada instante. As crianças de Ruanda apresentaram ao repórter, em meio a disputas internas, aquela bola. Não era uma bola qualquer: era a bola. Um patrimônio de criatividade e alegria que naquele momento nenhum outro brinquedo superaria. Os olhos das crianças espelhavam um prazer intenso ampliado nos sorrisos de dentes brancos e brilhantes que contagiaram o repórter. A tantos quilômetros de distância senti-me lá naquele campo de futebol e tive vontade de correr com as crianças, chutando a bola, tropeçando e simplesmente rindo junto como todas aquelas crianças. Enquanto pensava isso o repórter materializou as minhas intenções. Deixou o microfone de lado, tomou a bola das crianças e saiu chutando feliz, acompanhado dos gritos de alegria daqueles meninos e meninas que ainda não aprenderam sobre preconceito, segregação e massacre. E pedi a Deus que trouxesse com o ano novo um tempo de aceitação da diferença e fraternidade entre os povos. Desejei que aqueles risos fossem a trilha sonora de um novo tempo e que seus olhos fossem os farois a guiar seus pais rumo à paz.